Há alguns poucos momentos na vida em que de repente tudo o que fazia
sentido muda e do dia para a noite você se sente um completo sei lá o quê. É, a
confusão às vezes é tanta que você sequer sabe se definir. Não com palavras.
Aliás, com nada, afinal, como é que você vai se definir sem elas, né?
Passou a vida desejando aquele emprego, aquelas férias, aquele título,
aquele curso, aquele momento, mas não viu cada um deles chegar, estava ocupado
demais esperando pela chegada do próximo acontecimento e simplesmente não viu.
E não viu não apenas porque eles foram passando, mas porque você havia se
tornado outro em poucas semanas, sem se dar conta, sem perceber. De repente
algo dentro de você mudou e nada mais fazia sentido, nem tudo aquilo que você
passou a vida desejando que acontecesse quando aconteceu.
Há uns poucos momentos na vida em que nada parece mais fazer sentido e
você se pega olhando para dentro de você mesmo tentando entender o que
aconteceu. Aonde é que ficou aquele seu eu que estava ali até ontem? Não é
possível que você tenha dormido e ele tenha ido, assim, do nada. Pra onde? Pra
onde ele foi?
Até outro dia era alguém que dominava as palavras. Que dominava tudo,
aliás. Tudo estava rodando perfeitamente bem como deveria rodar. Seus
pensamentos eram domados, todos enfileirados e bons moços. Eram, de fato,
pensamentos brilhantes. Às vezes rebeldes, claro. E rebeldes porque ele
desejava lá no fundo que fossem, sempre havia desejado isso, mas não podia
realizar nada diferente até então.
Até outro dia seus olhos brilhavam por coisas simples, um copo de
Coca-Cola, um doce depois do almoço, um chiclete quando o tédio das
"15h35, a hora não não passa" de uma terça-feira batia ou por algum
reconhecimento profissional que você tanto queria e que finalmente conseguiu.
Mas de repente esse brilho foi embora. A Coca-Cola não tem mais graça, agora é
um líquido preto e doce. O doce depois do almoço virou um amontoado de creme e
chantilly que apenas engorda e já não supre o vazio que antes supria. Pois é,
trocou um buraco que antes era preenchido por açúcar, por um que parece não
fechar com nada. E o chiclete agora é mascado com força, como se sua mordida
pudesse fazer com alguma coisa que você quer e que não consegue suprir chegue logo.
Quem foi que levou você? Por que agora é tão difícil se ver no espelho, olhar
nos seus próprios olhos? Como é que tanto mudou em tão pouco tempo, que filtro
estava ali que agora que já não existe mais e por que ficou tão insuportável
estar apenas com você mesmo?
Tudo saiu do lugar e ele achava que seria bom se sentir assim, livre, se
é que podemos dizer assim. Na cabeça deles todos os dias imaginava como seria
viver isso que estava vivendo então, mas quando esse dia chegou não pode
suportar.
Houve uma época em que acordar lhe bastava. Abria os olhos, tomava seu
café enquanto lia o jornal ou as mensagens bobas das mídias sociais, tudo que
havia acontecido naquelas últimas horas em que você havia estado desconectado
apenas dormindo em paz ou sonhando coisas empolgantes. Nem sentia pressa em ler
tudo aquilo. Em seguida engatava uma série de atividades, uma atrás da outra,
que realmente pareciam ser necessárias fazer.
Certa época seu banho era calmo, sentia a fundo do cheiro do sabonete de
baunilha e a maciez da toalha. Era uma felpuda e branca toalha. Escolhia com
calma as peças da gaveta e com algum cuidado calçava a meia para não desfiar -
e para acomodar bem os dedos - dentro daquele sapato fechado para os dias mais
frios. E então pegava a blusa, a bolsa, caçava com paciência as chaves de casa
ou do carro e até saia assobiando fazendo aquele mesmo trajeto incrível de
todos os dias.
Não reclamava de nada. Não era um
problema aquela mesmice, tudo parecia estar em seu devido lugar.
Cumprimentava os pássaros, o porteiro - mesmo que internamente, nem
sempre estava a fim de sair espalhando bom dia. A multidão ao redor o fazia se
sentir pertencente e acolhido de alguma forma e você se sentia parte, vivendo
sua vida como deveria viver. Olhava o sol brilhando e se sentia aquecido até o
estômago e seguia para mais um dia maravilhosamente comum. E tudo fazia
sentido. Realmente fazia sentido.
Mas um dia ele se sentiu vivo, como
nunca havia se sentido antes.
E descobriu o quanto isso doía.
E descobriu o quanto isso doía.
Um dia ele experimentou um pouco do que sempre havia desejado
experimentar. E doeu. E ele começou, aos poucos, a querer não se sentir vivo
daquele jeito.
Um dia sair da cama tornou-se um problema porque estava se sentindo
vivo. Alguma coisa havia mudado. E olha só, ele não estava morto. Ele vivia
sim, normalzinho, como você, como no texto. Ele fazia coisas comuns todos os
dias. Mas do nada, algo o fez se sentir vivo e começou a doer perceber cada uma
de suas veias pulsando. Às vezes pulava da cama com tudo, assustado, com medo
de ter perdido alguma coisa. E às vezes sequer queria abrir os olhos, porque já
não reconhecia mais quem era lá dentro e tentava fugir de si mesmo enquanto se
sentia vivo.
Você já ficou pensando sobre como fugir de si mesmo? Não tem jeito, é
assustador. Você pode fugir de qualquer coisa no mundo, menos de você mesmo.
Mas se parar pra pensar nisso vai sofrer. E se já estiver pensando nisso, vai
entender perfeitamente o que digo. Não existe sono, comida, viagem, presente
que o faça enfrentar a si mesmo quando tudo o que você quer é fugir de dentro
do seu corpo.
O banho que era calmo, virou automático e já não sentia mais o cheiro do
sabonete. Aliás, sentia. Maldito cheiro de baunilha que te lembra algum frescor
que nem chegou a viver e que nunca viveria. Aquilo tinha cheiro de algo do
futuro que ele nunca conheceria, uma saudade de algo que nem viveu. A toalha
agora era só uma toalha cumprindo seu papel de enxugar. "Tanto faz",
dizia. As peças agora estavam bagunçadas na gaveta e vestia a meia de qualquer
jeito, podia até ser um pé de cada tipo. "Ninguém ia ver mesmo",
dizia.
Pegava qualquer blusa. Aliás, nem pegava mais. Não podia mais sentir
frio, porque já não sabia se o frio maior vinha de dentro ou de fora. Talvez
ele viesse de dentro e fosse mais frio que lá fora e isso lhe colocava em
choque térmico consigo mesmo. Assobios não existiam mais, apenas pensamentos
sobre o que é que estava acontecendo. A multidão agora o assustava, "como
é que em meio a tanto gente assim podia se sentir daquele jeito, tão sozinho e
vazio?". Como é que ninguém ali fazia sentido. E então até o sol virou
apenas paisagem e o seu calor já não era mais suficiente para aquecer o que
sentia.
Um dia tentou dizer tudo o que sentia de uma vez. Não conseguiu. Outro
dia tentou mudar tudo aquilo e voltar a ser quem era. Não foi possível. Tentou
achar formas de se esconder dele mesmo, mas não existia nenhum buraco que o
coubesse e que o aceitasse, porque os buracos que precisava não eram esses que
se cava em meio a um jardim qualquer. Eram buracos que só existiam nos vãos de
sua própria alma, mas que naquele momento haviam ido embora.
Que estranho era constatar isso. Sentir-se vivo deveria ser exatamente o
oposto, não é mesmo? Deveria ser incrível essa sensação de vida, aquela que ele
na verdade ele havia passado a vida buscando isso. Mas só quando se viu longe
de tudo o que o confortava antes, solto, avulso, diante de novas sensações é
que pode sentir o que era estar vivo de verdade. E isso o assustava. Ele
prefira ser o de antes, não tão vivo, só o suficiente para respirar um pouco.
Um dia tentou forçar seu despertar para ver se tudo aquilo era apenas um
pesadelo que iria acabar. E finalmente era sim, era só um pesadelo. Respirou
aliviado. Não era um daqueles pesadelos do mal, apenas um pesadelo.
E tudo aquilo acabou quando ele abriu os olhos às sete e vinte e
cinco de uma quarta-feira. E ele estava atrasado para o trabalho. Aquilo tudo
só acabou porque ele havia decidido que iria acabar. Só dependia dele.
Significava deixar muito para trás, doía. Na verdade doía de todos os lados e
de qualquer jeito. Mas se contentou com a sensação de não se sentir
assustadoramente vivo como antes e voltou a viver sua pacata vida de sempre,
era assim que se sentia seguro.
Extremamente seguro.
A verdade, a grande verdade, meu querido, é que se sentir vivo dói. E se
sentir vivo é para poucos, porque está acima de todos os portos seguros que
você já construiu em torno de você até agora. E o libertaria de todas as
algemas que o circulam, mas que aos olhos de qualquer outra pessoa são dádivas.
Os horários diários, o emprego que se finge adorar, os status construídos por
pessoas ao seu redor, a aliança no dedo que caiu como uma benção e todos os
outros pequenos detalhes do dia a dia que aos olhos de qualquer um são
incríveis, são o ápice. Mas são apenas o real, o pacato, o que te mantém
respirando por aparelhos, só o suficiente para não morrer, mas também sem
grandes sensações.
Quando nada mais fizer sentido, lindo, talvez o sentido ou o bálsamo
esteja em simplesmente voltar a ser quem você era. Ou se libertar, se tiver
forças, e ir finalmente sentir a dor de viver.
Escrito por: Flavia Gamonar